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UMA DELÍCIA DELICIOSAMENTE DELICIOSA
tempos de pobreza


Autor
JORGE FRANCISCO MARTINS DE FREITAS

Ao entardecer, uma aragem fria vinda do Norte começa a atenuar as elevadas temperaturas que, durante o dia, haviam assolado a baixa de Lisboa.

A multidão que até essa hora enchera praças e ruas do centro da cídade começa, aos poucos, a ficar mais reduzida, permitindo aos inúmeros turistas que por ali circulam observar, com maior detalhe, o ondulado desenho da calçada portuguesa.

Um idoso cidadão, apoiado no braço de uma rapariga, detém-se junto à montra de uma centenária confeitaria.

— Estás a ver, querida netinha, estes figos recheados de nozes?

— Sim, estou a ver! Têm um aspeto delicioso!

— Vamos entrar e provar essa delícia!

Após terem aguardado alguns minutos numa fila de espera, um empregado encaminha-os para uma mesa situada no primeiro andar do estabelecimento.

— Traga-nos, por favor, chá com leite e dois figos com nozes.

— Mas, avozinho, Isso é muito pouco. Só dá um figo para cada um de nós!

— Sim, é verdade, mas, pelo menos, vais comê-lo de imediato! – responde o avô. — Vou contar-te uma história que se passou comigo quando tinha oito anos de idade.

O idoso recosta-se um pouco mais na cadeira, parecendo alhear-se de tudo o que o envolve, projetando o pensamento para um distante passado.

A visão da elegante confeitaria é substituída por uma humilde casa. Volta a ver a sua mãe a preparar o jantar num velho fogão a lenha.

Observa-se a si próprio, debruçado sobre a mesa da cozinha, coberta por uma axadrezada toalha branca e vermelha, enquanto lê, no Livro da Terceira Classe, o texto Rios de Portugal:

«A maior parte dos nossos rios nascem nas serras e descem velozes para os vales e planícies, onde parecem ficar adormecidos, tão suave é ali o deslizar das suas águas.»

O pai, de regresso do trabalho, entra em casa, visivelmente fatigado. Com a sua calejada mão afaga a cabecita do filho.

— Que estás a estudar, Daniel?

— Estou a ler uma lição sobre os rios de Portugal.

— Ah, sim? Então qual o maior rio que nasce no nosso país?

— É o Mondego! – responde a criança, sem hesitar.

— Muito bem, Daniel. Trago aqui uma guloseima parta ti!

— O que é? – pergunta a criança expectante.

— Não sei o que é, mas deve ser uma delícia deliciosamente deliciosa, pois vem embrulhada num bonito papel de prata. O patrão da fábrica fez anos e ofereceu a cada um dos operários um copo de vinho do Porto acompanhado desta guloseima. Eu guardei a minha para ti!

— Obrigado, paizinho. Dá-ma, por favor!

— Só ta entrego pelo Natal, se a professora me dizer que melhoraste as tuas notas!

O pai pega na guloseima e coloca-a, bem à vista, no topo de um armário de difícil acesso para uma criança.

Daniel interrompe a história que vinha relembrando, em virtude de o empregado estar a colocar sobre a mesa o bule com chá, a leiteira, as chávenas com os respetivos pires e os talhares. Num prato à parte, vinham os dois figos com nozes, ostentando um apetitoso aspeto.

— Deves ter ficado muito triste por não a poderes comer de imediato – comenta a neta.

— Sim, fiquei muito pesaroso. Ainda não sabia que se tratava de um figo com nozes, mas o desejo de provar essa guloseima constituía um incentivo para estudar ainda mais. Sempre que chegava da escola, punha-me a observar o alto do armário. Lá estava ela, parecendo olhar para mim! A claridade do candeeiro a petróleo incidia sobre a prata, originando apelativos raios luminosos que inflamavam anda mais a minha vontade de a comer!

O espírito de Daniel volta a retroceder no tempo, sentindo a mesma ansiedade que então experimentara. O que conteria aquela prata? Seria um bombom de chocolate recheado de anis, igual àquele que o padrinho lhe oferecera no ano anterior? A sua mera contemplação constituía um suplício para ele! À noite, sonhava que chegara finalmente o momento em que iria provar aquela delícia.

Dias mais tarde, a mãe recebe a visita de uma vizinha, trazendo pela mão a Maria Amélia, uma criança da sua idade. Como ela era linda, com os seus dourados cabelos, uns penetrantes olhos verdes e um sorriso encantador!

— Vai buscar o tabuleiro do Jogo da Glória e entretenham-se os dois aqui na cozinha, enquanto eu e a mãe da Maria Amélia vamos conversar para o quintal.

Daniel coloca o tabuleiro sobre a mesa e pega nos dados para começar a jogar, mas a sua atenção permanece centrada no topo do armário.

— Estás a ver, lá no alto, aquela prata? – pergunta, dirigindo-se à outra criança. — Tem lá dentro uma guloseima. O meu pai ofereceu-ma, mas só ma dá se eu tirar boas notas na escola.

— O meu pai, quando traz guloseimas para casa, dá-mas, imediatamente. O teu deve ser muito forreta! Porque não sobes para um banco e a tiras de lá?

— Tenho medo de cair.

— Não tenhas receio! Eu seguro-te!

Maria Amélia ajuda-o a subir para o banco, mas, mesmo colocando-se em bicos de pés, não consegue alcançar o topo do armário.

As respetivas mães voltam do quintal e, ao presenciarem a cena, gritam, aflitas:

— O que estão a fazer?

Ambos se assuntam. A Maria Amélia deixa de segurar o Daniel e este cai desamparado no chão, começando a queixar-se de imensas dores num dos braços.

A recordação do idoso é interrompida pela neta:

— Coitadinho do meu avô! O que aconteceu a seguir?

— A mãe de Maria Amélia era empregada de limpeza no posto médico local das Caixas de Previdência. Levou-me até lá, mas acabei por ser encaminhado para o Hospital de São José. Regressei nessa noite a casa, com o braço engessado.

— Deves ter sofrido muito! – lamenta a neta.

— Sim, sentia dores horríveis, mas aquela noite foi agradavelmente inesquecível para mim!

— Inesquecível, acredito que sim! Mas agradável, não me parece…

— Apesar de estar engessado, o meu pai retirou o cinto das calças e preparava-se para me aplicar umas valentes vergastadas, por ter tentando alcançar a guloseima sem sua autorização.

— O teu pai era bastante mau!

— Na altura, muitos chefes de família comportavam-se assim, batendo nos filhos – e até nas mulheres – se estas lhes desobedecessem. O que me valeu foi a minha mãe ter-se lançado aos pés dele, implorando-lhe que me perdoasse.

— Perante toda essa tragédia, por que razão consideras que essa noite foi agradavelmente inesquecível para ti?

— Porque a minha mãe conseguiu convencer o meu pai que se ele me tivesse dado, de imediato, a guloseima, nada disto teria acontecido. Como resultado, eles vieram entregar-ma e, expressando-me poliptoticamente1 como o meu progenitor, pude finalmente me deliciar com uma delícia deliciosamente deliciosa!

* * *

Notas

1 O poliptoto é uma figura de retórica, próxima da paronomásia, que consiste na utilização de uma palavra em diferentes flexões. Este recurso era muito comum em escritores clássicos como Camões (Aquela cativa/Que me tem cativo,/Porque nela vivo/Já não quer que viva.[Endechas a Bárbara escrava]). Fora do contexto literário, a sua utilização não é recomendável, pois, como o nosso idioma é lexicalmente rico, podemos sempre socorrer-nos da sinonímia, isto é, da utilização de outras palavras que possuam o mesmo significado.

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