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A IRMÃ DE LEITE DA PRINCESA

Romance Histórico
Portugal, 1845-1913


autor
Jorge Francisco Martins de Freitas

Episódio 9

Há vários dias que um intenso calor atinge a região de Lisboa, apesar do outono já haver começado há mais de um mês.

Aguadeiro

Os inúmeros galegos que exercem a profissão de aguadeiros não têm um momento de descanso. De manhã, muito cedo, fazem fila, junto dos chafarizes existentes na cidade, para encher barris e bilhas de barro com o precioso líquido, percorrendo, no resto do dia, as escaldantes vielas, entoando o seu apelativo pregão:

— Aúúúúúúú, água fresca, água fresquinha!

Feira da Ladra, na atualidade

Ana Francisca e Maria Isabel há duas horas que percorrem, no Campo de Sant’Ana, a Feira da Ladra, um dos mais antigos mercados de Portugal.

Ao longo dos séculos, esta feira lisboeta passou por inúmeros locais. Documentos antigos já atestam a sua existência no ano de 1272, localizando-a na Costa do Castelo, no espaço onde hoje se situa a Travessa do Chão da Feira. No reinado de D. Dinis, uma determinação camarária também a refere, indicando a sua mudança para outro lugar. A primeira alusão à sua realização no Rossio é datada de 1552. Após o terramoto de 1755, surge na Cotovia de Baixo, atual Praça da Alegria, chegando a ocupar o lado ocidental do Passeio Público. Após ter passado por diversos outros pontos da cidade, fixa-se, em 1835, no Campo de Sant’Ana, lugar onde já estivera, durante cinco meses, em 1823. Aqui permanece até 1882, altura em que é transferida para o Campo de Santa Clara, sua atual localização.

Mãe e filha procuram alguns adornos baratos para o seu vestuário e um pente em marfim que havia sido encomendado por D. Antónia. Cansadas e cheias de sede, sentam-se nos degraus da porta de um dos elegantes prédios residenciais que envolvem a zona.

Sequiosas, não resistem a comprar, a um dos aguadeiros, uma dose de água fresca que lhes é servida num copo de barro. Depois de a partilharem, sentem-se mais bem-dispostas, sorrindo abertamente uma para a outra.

Haviam sido transportadas até perto da feira numa das charretes do palácio, conduzida por Xavier, um bonacheirão serviçal de meia-idade que normalmente se encarrega de realizar recados para a família real. Natural de Monção, no norte de Portugal, veio trabalhar para Lisboa ainda jovem, nunca tendo perdido, no relacionamento social, o uso verbal da segunda pessoa do plural, ainda hoje utilizado naquela região, até por alguns jovens («Vós ides à discoteca, esta noite?»), mas que, aos poucos, fora caindo em desuso no resto do país.

Antes de abandonar o local onde as deixara, Xavier diz-lhes;

— Vou tratar de comprar os artigos que me encomendaram. Se não estiverdes aqui até às quinze horas, tereis de regressar a pé!

— A pé? – pergunta, aflita, Ana Francisca. — Nunca mais lá chegávamos! O que diria Sua Majestade se soubesse que nos tinha abandonado no outro extremo da cidade?

— Estou a brincar, Ana Francisca! – responde Xavier, com um sorriso maroto. — Eu aguardarei por vós, mas agradeço que sejais pontuais.

Quando estão prestes a se dirigir para o local onde a charrete as espera, veem surgir, à sua frente, o Alfredo. A mãe de Maria Isabel fica admirada com o elegante traje que este enverga: umas calças ligeiramente largas, caindo sobre botas impecavelmente envernizadas; uma gravata branca meio escondida no colarinho da camisa; um colete, discretamente adornado com botões e, sobre toda esta vestimenta, um pequeno casaco preto, com mangas largas.

O antigo moço da estrebaria coloca o chapéu sob o braço e, fazendo uma ligeira vénia, dirige-se a Ana Francisca:

— Sinto-me muito feliz por te encontrar! Como a tua filha está crescida!

Desde muito nova, Maria Isabel várias vezes havia perguntado à mãe quem era o pai dela, recebendo sempre a mesma resposta:

— O teu paizinho é um nobre da minha idade. Vivemos separados porque o pai dele é mau e não nos deixa casar um com o outro. Ele conhece-te e gosta muito de ti. Assim que o teu avô vá para o céu, passaremos os três a viver juntos.

Esta informação correspondia à dura realidade, embora atenuada pelo uso de palavras simples que qualquer criança de tenra idade pudesse entender. Maria Isabel, porém, nunca acreditou na veracidade desta história, admitindo que o pai seria um dos criados da corte, inclinando-se sobretudo para Alfredo, em virtude de este assediar diariamente a sua mãe durante o tempo em que viveu no palácio.

Enquanto o pensamento da irmã de leite da princesa vagueia por estas recordações, a sua mãe continua a falar animadamente com Alfredo. Agora que o pai de sua filha havia sido vitimado pela cólera, sente que necessita refazer a vida, pelo que questiona o seu pretendente de há muitos anos:

— O Alfredo já se casou?

— Não! – responde o antigo moço da estrebaria, animado com a pergunta formulada por Ana Francisca, indiciadora de um hipotético interesse por ele. — Já namorei algumas raparigas, mas nunca consegui nutrir por elas nem metade do amor que sempre tive por ti!

— Na próxima terça-feira, a Maria Isabel vai acompanhar a família real na inauguração da primeira linha de caminho de ferro em Portugal. Nesse dia estarei livre para conversar consigo, se assim o desejar.

— De acordo, Ana Francisca! Irei ter contigo por volta das dez da manhã.

Inauguração da primeira ferrovia em Portugal

Uma semana mais tarde, a família real acorda muito cedo. Chegara finalmente o dia 28 de outubro 1856, uma data histórica para Portugal: iria ser inaugurada a primeira linha de caminho de ferro do país, entre Lisboa e o Carregado, numa extensão de trinta e seis quilómetros e meio.

A iniciativa da introdução de ferrovias em Portugal havia partido de Fontes Pereira de Melo, ministro das Obras Públicas. Uma das poucas vozes dissonantes relativamente a este projeto proviera de Almeida Garrett que temia que este meio de transporte viesse a acentuar ainda mais a diferença de desenvolvimento entre as grandes cidades do litoral e o interior do país.

A composição ferroviária utilizada para a viagem inaugural entre Lisboa e o Carregado (ida e volta), constituída por duas locomotivas (a Portugal e a Coimbra) e por dezasseis carruagens já se encontra, desde manhã cedo, estacionada no Cais dos Soldados, construído num terreno junto ao Palácio Coimbra. A atual estação de Santa Apolónia só será edificada nove anos mais tarde… Toda a zona da partida se encontra profusamente engalanada, debaixo do sol escaldante que há mais de duas semanas atormenta os lisboetas.

O coche transportando Maria Isabel, D. Antónia e D. Luís foi dos primeiros veículos do Palácio das Necessidades a chegar ao local. De imediato, os dois príncipes e a plebeia entram na carruagem ferroviária que lhes está destinada, onde já se encontra o Cardeal-patriarca, encarregado de benzer esta mais-valia para o progresso de Portugal.

D. Pedro V, D. Fernando e os restantes infantes são aguardados na carruagem real, engalanada com bandeiras do Reino e dos caminhos-de-ferro.

Às dez da manhã, a composição ferroviária, repleta de convidados, parte em direção ao Carregado, mas, em breve, se verifica que as duas máquinas não possuem a força suficiente para puxar todas as carruagens que lhes haviam atrelado, tendo de largar algumas pelo caminho…

Maria Isabel e D. Antónia vão-se revezando junto à janela.

Têm a sensação de estar paradas, vendo a paisagem deslocar-se à estonteante velocidade de quase sessenta quilómetros por hora.

Ao fim de quarenta minutos, os convidados que restam da primeira viagem ferroviária realizada em Portugal chegam ao Carregado, onde os aguarda um lauto banquete, antes do regresso a Lisboa.

Entretanto, os ocupantes das carruagens que foram sendo largadas ao longo do caminho, tentam voltar à capital socorrendo-se de velhos veículos de tração animal, só ali chegando a altas horas da noite, situação que, durante meses, irá ser jocosamente comentada nas reuniões sociais realizadas na cidade.

No dia seguinte, este percurso é aberto a todos os que desejem utilizá-lo, sendo praticados os seguintes preços de ida e volta:

• 1.ª classe – 700 réis

• 2.ª classe – 560 réis

• 3.ª classe – 240 réis

A conclusão dos traçados mais importantes da rede ferroviária portuguesa prolongar-se-á por mais de meio século.

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